domingo, 15 de novembro de 2015

Tocqueville, "enfant terrible" ou "promeneur solitaire"?

(via Literatura Marginal)

A França é fértil em dar ao mundo desapaixonado as personalidades mais irrequietas e apaixonantes, as revoluções mais sanguinárias, os reis mais exuberante ou os estadistas mais inspiradores. De Voltaire a Victor Hugo, de Baudelaire a Rimbaud (o protótipo do enfant térrible), de Henrique IV ou Luís XIV a Napoleão, a imaginação procura as associações, politicamente ora mais voltada à direita, ora mais determinadas à esquerda, artisticamente, socialmente, ou ideologicamente, ora mais radicais, ora mais moderadas, ora românticas, ora procurando o realismo. Tocqueville não preencheria este espaço de forma tão concreta, em princípio, nem como homem de letras (seguramente original), nem como homem político (moderado e realista), nem tão pouco vocacionado para estadista (tímido, sério, contido, era em tudo um político de gabinete e não de campanhas). A postura do jurista e filósofo não deixa de ser interessante, na certeza de que as ideias nem sempre são fáceis de catalogar em figuras tão complexas, principalmente num século, como foi o século XIX, que vivenciou um fervilhar de experiências e ideias que o marcaram e que teriam consequências gravosas no século XX.

 Certamente que nem todos os autores serão tão fáceis de rotular. Mas das duas ideias que já nos textos anteriores tenho debatido, as associações e dissonâncias entre a democracia e a liberdade, os vários autores (de Burke aos Pais Fundadores, de Acton a Tocqueville) não deixam de parecer mais inconsequentes. Sem dúvida o mais paradoxal é Alexis Tocqueville. A sua originalidade e a sua rebeldia são sedutoras. É verdade, a rebeldia de um homem moderado, aristocrata liberal, conservador e espírito vivo de uma época marcada por todas as conturbações. Um aristocrata na França que restaurava a monarquia dos Orleães, mas que depressa o desiludiu. Optimista, por vezes, ou pessimista, quase sempre, não acreditava no corolário Hegeliano no fim da história que Guizot preconizava ao ver o triunfo político da classe-média como um patamar de não retorno. A ideia conjecturada por muitos que optavam pela segurança em detrimento da liberdade não agradava a Tocqueville, essa mesma crença que o fazia sempre insatisfeito, e sempre descontente com o seu tempo e com os seus contemporâneos. Como confessou certa vez, sentia-se como um Don Quixote quase a enlouquecer num mundo que perdia a virtude, apelava pelo heroísmo num tempo em que os heróis já tinham sido relegados. Nesse sentido, a monarquia burguesa de Julho estava longe de o satisfazer.

A ideia de uma aristocracia promotora da liberdade parece viver apenas naquele ideal oitocentista francês, um pensamento que pode ter várias interpretações à direita (defesa da liberdade contra a centralização, até mesmo associada, noutra vertente, a um pensamento tradicionalista e monárquico) como à esquerda (defesa da liberdade contra a tirania, favorável à moderação contra os radicalismos), mas ambas moderadamente centristas, e talvez explique porque é que o pensamento de Tocqueville foi tão renegado durante décadas, mas ainda assim é redutor fazer este julgamento, podemos amparar as dúvidas num terreno mais cinzento e não tanto a preto-e-branco, como forçosamente identificar este grupo de homens do século XIX mais à esquerda ou mais à direita. Burke dir-se-ia um Old Whig (distinguindo-se dos New Wihg, mais radicais) um anti-revolucionário que defendia a guerra contra a revolução em França, mas que soube apoiar a revolução na América; Acton, outro Whig católico que seguia uma perspectiva liberal e aristocrática anti-revolucionária, e que também se inspiraria em Burke. A moderação britânica nem sempre foi procurada no continente europeu sujeito a todas as rupturas mais abruptas e às revoluções mais sanguinárias. Daí a importância de Tocqueville, o mesmo homem que nas décadas conturbadas da história francesa definir-se-ia em carta como "liberal de uma nova espécie". Confessava amar a liberdade, mas temer as multidões e odiar a demagogia, porém, acontrario sensu, também confessava em carta que amava as instituições democráticas desde que moderadas e conjugando a tradição com o progresso, ideia que só poderia sair da pena de um pensador aristocrático. Ficamos assim num impasse, encurralados na dialéctica daqueles pensadores aristocratas. O que dizer da liberdade e o que condenar da democracia? Ficamos no meio-termo cinzento tão provocador e ambíguo.

A verdade é que Tocqueville foi sempre um crítico do seu tempo, mas ao mesmo tempo apresentava-se como um observador imparcial, politicamente ao centro, procurando um perfeito equilíbrio entre o passado e o futuro. O problema da geração que viveu a monarquia de Julho era esta: como criar um regime que aceitando um governo representativo  poderia combinar a liberdade e a ordem, o respeito ao passado conjuntamente com novos direitos e liberdades?
A verdade é que, mesmo como advogado, tendo jurado fidelidade à monarquia de Orleães, ainda que toda a família fosse legitimista (i.e., fiel à causa dos Bourbon), ainda assim, Tocqueville não deixava de suspeitar daquela nova classe média que ascendia às posições de poder, definindo-se enquanto um crítico desse novo governo burguês, sem virtudes, tão materialista e desonesto. Uma constatação que contrastava com o seu idealismo, um certo romantismo e gosto da aventura, como confessou. É a posição de um aristocrata que tem do mundo e da vida uma visão particular e demasiadamente pessoal para ser associado a qualquer partido ou grupo, um isolamento sentido e que o marca, mas que ao mesmo tempo o define como um pensador singular e tão original. As críticas que perpassa ao materialismo e aos progressos materiais encontram um paradoxo interessante entre nós, na esteira do velho liberal Herculano e do jovem socialista de cátedra Oliveira Martins, este último, no seu "Portugal Contemporâneo", não deixa de atentar contra esse progresso que vê como nefasto. Tocqueville concordaria nesse parágrafo. Como comprova o desencanto provocado pela monarquia de Julho, mas não o desinteresse pela política, nem a ruptura com os meios monárquicos que frequentava, sem que deixasse de ser o homem singular que era, o mesmo solitário, isolado entre os próprios contemporâneos.
Politicamente era um moderado, mas filosoficamente era imoderado e irrequieto. A sua análise da democracia não eram completamente anti-democrática. Podia acreditar numa moderação desse sistema, como escreveu. Contudo, essa força que se aproximava, parecia-lhe ao mesmo tempo nefasta: trazia no seu seio a destruição de todas as liberdades, uma excessiva preocupação pelos interesses privados, o seu individualismo e isolacionismo, que poderiam originar um novo despotismo democrático. Aliás, chegava a comparar a democracia às "águas de um dilúvio", expressão que pode ser encontrada nas notas do seumagnus opus "Da Democracia na América".
Por isso aclamava pela moderação, pelo refreio e contenção da democracia. Para ele há duas maneiras de alcançar a igualdade: ou todos podem ter os mesmos direitos em liberdade, ou todos podem ser privados dos seus direitos em despotismo.

 Nessa sua obra magistral revela os paradoxos do seu pensamento, identificando a igualdade social como um traço marcante das sociedades modernas, mas ao mesmo tempo suspeitando da igualdade imposta pelas democracias. O problema da democracia, analisava, é que não conseguem diminuir a influência do governo, não conseguem criar esses corpos intermédios (não consegue garantir a liberdade), essa forma de governo tende ao despotismo, um despotismo que, não sendo violento, consegue um controlo total sobre os seus cidadãos. Por isso Tocqueville defendia a descentralização. Em França, particularmente, depois da restauração da monarquia de Julho, cresceu a obsessão liberal pela... liberdade, como era então entendida pelos mesmos liberais-monárquicos, conservadores, alguns ainda com alguma inspiração do Ancien Régime, mas também reformistas, que olhavam o passado com alguma nostalgia e compreendiam desconsolados como os tempos tinham mudado. Viam a necessidade da restauração dos poderes intermédios independentes do governo, as liberdades regionais, mas esse desejo, alimentado pelos grupos Realistas aquando da restauração, longe ficou de se concretizar.

Para ele a democracia diminuía a ambição das pessoas, a ambição alimentada é vulgar e desinteressante, em suma, entendendo que o homem que escreve estas reflexões (quer no "Da Democracia na América", quer  "O Antigo Regime e a Revolução") está tão preocupado moralmente com o espírito humano como com a segurança das instituições.  É necessário, como sublinhou, que nas sociedades democráticas, o espírito comercialista seja contra-baloiçado por uma vida cultural rica, dando particular atenção às artes, às ciências, à cultura. Os intérpretes de Tocqueville podem ficar na dúvida em rotulá-lo como anti-democrático, ou como pessimista em torno da democracia, ou como um pensador original da mesma, forçando a análise a permanecer num patamar ambíguo que mesmo o próprio não tão facilmente desenvencilharia.
Para que a democracia sobrevivesse precisava delinear um elemento aristocrático, entendendo como "aristocracias" as associações legais e permanentes, as cidades, vilas, ou associações. No fundo, promover os corpos e entidades que incentivam os indivíduos a prosseguir os seus projectos. É necessário que esse regime garanta a liberdade, numa súmula que caracteriza como "Moderar a Democracia com a Democracia", i.e., para moderar a doença congénita à própria democracia é necessário investir na educação, liberdade de imprensa, liberdade de religião, descentralização, investir nas liberdades locais e institucionais, e na eleição dos funcionários. Aprova a religião como necessária para moderar a sede materialista e a ganância. As instituições devem promover o espírito de liberdade capaz de combater os vícios naturais destas sociedades. Mas seriam estas reformas concretizáveis? Tocqueville é um idealista, um político moderado e realista que almejava tornar-se-a voz da moral e do bom-senso mas que ficou longe de ser ouvido pelos seus contemporâneos. O seu pensamento moderado casava com um coração imoderado. Era verdadeiramente, discretamente, um enfant terrible, tão original e tão incompreendido como um artista renegado, mas, como alguém notou, era demasiadamente político para ser uma mera figura literária, mas demasiadamente literário para ser meramente um político. Um homem com uma forte imaginação, que definia os seus "desejos agitados" como uma doença dentro dele. Um romântico reprimido, como as ideias denotam, o seu idealismo, a sua procura aristocrática pela harmonia, pelo equilíbrio, pelo justo. A sua ambiguidade entre a moderação política e a grande ambição que sentia criavam nele um estado depressivo e uma agitação incontrolável, foi efectivamente o "promeneur soliteire", quase tão efectivamente como foi o "enfant terrible"e estamos longe de o compreender totalmente, ainda que sirva sempre de inspiração. Como o próprio se descreveu: "Sou para mim mesmo um eterno enigma."

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